top of page

CARTA DE BELO HORIZONTE

XI COLÓQUIO INTERNACIONAL DO LEPSI,

VI RUEPSY, II RED INFEIES, II PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO DE MINAS

20 a 23/09/2016 – UFMG

 

À comunidade brasileira de Psicanálise e Educação e à sociedade em geral

 

O LEPSI é o maior diretório brasileiro de pesquisa no campo da Psicanálise e Educação, reunindo investigadores da USP, UFMG, UFOP e UNIFESP. Seus colóquios internacionais estão entre os maiores eventos mundiais do campo. Tradicionalmente, reúnem-se neles convidados e participantes que abordam temas sobre a infância, a adolescência, a docência e seus sintomas no âmbito educativo, bem como o mal-estar na educação, na cultura e na política.

 

Pela primeira vez em Minas Gerais, o Colóquio deu seguimento às discussões extraídas de três Encontros Preparatórios em Mariana (UFOP), Belo Horizonte (UFMG) e São Paulo (USP), que definiram o tema central da edição de 2016: “Os sintomas na educação de hoje: que fazemos com ‘isso’?”.

 

E por que a ênfase no sintoma? Ora, porque para a psicanálise ele não é sinal de uma doença, como habitualmente se pensa com base na ordem médica ou psicopedagógica, mas um fenômeno subjetivo constituído pela realização deformada do desejo. Evocamos tal noção inclusive para mostrar seus limites, avanços e novidades. Discutimos como hoje o sintoma se apresenta na adolescência, na infância e na docência, analisando o que fazemos com isso no meio educacional. Interessou-nos, portanto, discutir e entender o que as pesquisas, as intervenções e os trabalhos de Psicanálise e Educação têm contribuído para elaborar o “isso” como outro nome do inconsciente e fazer deslocar o sintoma: daquele nomeado em demasia pela ordem psicopedagógica e biopolítica, em favor de um sintoma que venha do real e que revele o que mais propriamente possa concernir ao sujeito, sua singularidade.

 

Estamos certos de que, com o evento, propiciamos a estudantes, professores e demais profissionais um fértil espaço para socialização, problematização e intercâmbio de trabalhos que estudam os novos sintomas e as novas intervenções no que tange ao campo Psicanálise e Educação. 

 

Para pôr isso em prática, o XI Colóquio Internacional do LEPSI propôs e efetivou, entre outras novidades, um dispositivo metodológico singular para a apresentação de trabalhos inscritos, sob a forma de “espaços de fala” que se denominaram “Fóruns de Comunicação Livre”. Tratou-se de 12 grupos compostos, cada, de 15 a 24 pessoas, que se reuniram por 6 horas, em três tempos (e dois dias) ao longo do evento: (1º) tempo de apresentação – ver; (2º) tempo de problematização e eleição do relator – compreender; e (3º) tempo de proposição e reunião dos relatores – concluir. Os fóruns foram organizados pela Comissão Científica de acordo com a proximidade dos temas inscritos, sempre a partir dos três Eixos fundamentais do evento: Adolescência e Sintomas; Infância e Sintomas; e Docência e Sintomas. Cada Fórum contou com a presença de professores convidados que acompanharam os participantes e de relatores eleitos, visando ao máximo desierarquizar o saber do especialista. A função dos convidados foi estar presente em seu fórum para instigar o debate e as proposições a serem relatoriadas e apresentadas na “Mesa-Redonda Final” do evento. Um pouco antes dessa Mesa, foi destinado um momento para que os relatores dos fóruns e professores convidados se reunissem e estabelecessem os pontos principais das proposições debatidas e apresentadas por cada grupo. Em seguida, na Mesa Final que reuniu todos os participantes do evento, três relatores (um de cada Eixo) comunicaram tais pontos ao grande público, e os três professores convidados, que acompanharam os fóruns, comentaram essas relatorias sob a perspectiva teórica acerca do tema geral do evento (Os sintomas na educação de hoje: que fazemos com “isso”?). Uma das intenções do dispositivo e da síntese estabelecida na Mesa Final foi a de compor a presente Carta com os apontamentos propositivos do Colóquio sobre seu tema central.

 

Argumento: ao propormos encontros preparatórios ao longo do período de dois anos de preparação do evento, buscamos experimentar um dispositivo que nos colocasse em trabalho, identificando problemas comuns que aproximavam profissionais e estudantes em torno de temas recorrentes no campo Psicanálise e Educação. Buscamos problematizar também as diferenças semânticas, epistemológicas e políticas acerca das diversas acepções dos termos “sujeito”, “sintoma”, “saber” e suas implicações, bem como da relação do sujeito com o saber, na perspectiva clínica. 

 

Temos a hipótese de que a construção teórica e de pesquisa de cada um é sempre perpassada por sua própria singularidade (fantasística) e consideramos que isso não pode ser escamoteado no meio acadêmico. É importante identificar os pontos cegos de cada envolvido, tanto no plano intelectual e científico como no da produção inconsciente, e também formularmos um saber que não deixa de ser uma ficção de si mesmo; uma ficção que busca encontrar um lugar socialmente pertinente para quem o produz. Nenhum objeto de pesquisa é neutro e se inscreve num percurso pessoal específico, evidenciando que a pulsão de saber nos anima intensamente num processo de pesquisa, que se torna indissociado de seu próprio produto.


A atividade do pesquisador e seus desdobramentos nos processos de intervenção são entendidos como espaço no qual o sujeito desenvolve uma verdadeira dramática dos usos de si, marcada por valores e saberes – conscientes e inconscientes –, que resulta em maneiras singulares de fazer e de viver as contradições, as angústias, as restrições e os recursos disponíveis. A atividade do pesquisador é sempre tentativa de reinventar o que nela não pode ser antecipado; reinvenção singular que se confronta, no coletivo, com outras produções singulares, multiplicando, como num caleidoscópio, as diversas possibilidades de arranjos, de encontros e desencontros.

 

Uma metodologia que vivamente ressalte tal reinvenção foi a aposta do LEPSI para compor o Colóquio Internacional, a espelho do que foi ensaiado em seus encontros preparatórios. A ideia foi propiciar o surgimento de “pontos cegos” na atividade de profissionais e estudantes que se dispusessem a responder à pergunta de mirada política: “O que fazemos com isso?” no que tange aos sintomas da educação contemporânea. Buscamos também propiciar uma implicação do sujeito e do objeto de pesquisa, não necessariamente para responder de maneira unívoca e repetitiva à pergunta que formulamos, mas antes, para discutir o processo de produção do conhecimento científico da Psicanálise e Educação em diálogo com outros campos de saber, por meio de “espaços de fala” horizontais entre participantes de vários grupos de pesquisa do país e do exterior. Nesse sentido, mantemo-nos atentos às questões que nos orientam: como praticamos o que nos foi transmitido formal ou informalmente em termos de descobertas ou invenções? Inventamos? Reproduzimos ou repetimos o que já sabemos e conhecemos? Como escolhemos e aplicamos uma metodologia e seus procedimentos? O que recolhemos dos efeitos de possíveis intervenções que possam provocar avanços conceituais? Manter o campo Psicanálise e Educação aberto às perguntas e a outros campos do conhecimento, eis sua possibilidade de sobrevivência.

 

Assim sendo, passamos a descrever o que foi extraído das relatorias finais e dos comentários dos três eixos fundamentais do XI Colóquio Internacional do LEPSI, no sentido de publicizar tanto quanto possível os apontamentos propositivos do evento para o campo e para a sociedade de maneira geral. Cabe lembrar que nenhuma relatoria corresponde ao real, ainda que sempre se busque alcançá-lo. Ela é fruto dos esforços generosos e infatigáveis dos relatores eleitos para a tarefa (impossível) de tecer a síntese do mar de ideias tão rico quanto vasto surgido nos 12 fóruns de comunicação livre:

 

EIXO 1: ADOLESCÊNCIA E SINTOMAS:

 

Proposições: “Há sempre uma canetada no meio do caminho”. Os 3 fóruns do Eixo da adolescência discutiram a validade e a eficácia do que se fez perante o atual quadro político, em que se vislumbra uma reforma antidemocrática do sistema de Ensino Médio em nível nacional, sem nenhum debate com a sociedade. Apesar deste quadro, os fóruns ponderaram a necessidade de se fazer escutar, inclusive com a possível cobrança ao Congresso acerca do veto a tal reforma.

 

Propõem-se dois pontos: (1) encaminhar o manifesto ao Congresso, contra essa tentativa de disciplinarização e mutismo, cerceando a palavra a partir do solapamento de seus espaços, como nos campos da arte, da sociologia, da filosofia e da educação física, isto é, aqueles em que se veiculam palavras e que colocam o corpo em cena; e (2) interrogar que tipo de apoio ou de investimento em formação de professores se poderá contar de agora em diante ou que suporte o professor precisa “ter para fazer” mediante esse arbítrio do Governo Federal.

 

Dispositivos de mediação: foi proposta a implementação das rodas de conversa, bem como de outros dispositivos e práticas de mediação, que favoreçam o estar ao lado do adolescente, possibilitando saídas construídas coletivamente tanto entre seus pares, quanto com os adultos implicados. Busca-se fazer com que os professores ensinem a plantar e, juntamente com os alunos, se posicionem como o “homem mascarado” (da peça O Despertar da Primavera, de Wedekind): posicionar-se ao lado do aluno de forma alteritária, e não autoritária. Essa decisão já deve ser despertada em sua formação para que ele entenda seu lugar de direcionamento de questões, e não de imposição. Não se trata apenas de um lugar de fala e de exercício de todo saber, mas também de escuta e de construção conjunta. Há que se poder suportar, no sentido de conviver e também de dar suporte, sabendo acolher os excessos pulsionais que são característicos da adolescência. Assim como o analista, responsáveis e profissionais que trabalham com os jovens devem suportar um pouco o lugar do não saber, da falta, numa postura ética que resgata a lacuna para a emergência do sujeito adolescente. Questiona-se como o professor pode estar lá implicado como desejante e que operadores se podem aproveitar para isso, como a própria transferência.

 

Eis o lugar do Outro na transmissão, que deve ser ocupado pelos profissionais que acompanham o adolescente. É importante estar ao lado do jovem: fazer junto, pôr a “mão na massa”, mas estar ao lado não é estar no mesmo lugar. Há que se ter o Outro de modo que ele não seja totalizado nem desapareça como sujeito; um Outro que represente menos esse lugar de “depósito de saber” e mais o de estar junto no desafio do aprendizado. Trata-se de um lugar de “mestre impossível” que tem a missão de sustentar essa posição de não todo, mantendo sua função de alteridade.

 

Dispositivos de suporte: propõem-se “fóruns intersetoriais e permanentes” onde se possa favorecer a circulação da palavra em torno dos adolescentes, fazendo circular entre nós nossas dificuldades e os impasses em busca de soluções. Há uma proposta de encarar cada ator envolvido (professores, psicanalistas, assistentes sociais e juristas) como parte de um cardume, e não como “peixes fora d’água”, que possam propor novas soluções e reinventar a rede a partir dos casos e de situações singulares e contingentes. Também se sugere especial cuidado para que as instituições, sobretudo a família, não estejam eximidas de suas funções. Cuidar igualmente para que tais iniciativas não recaiam excessivamente sobre o professor, mas, antes, sobre a instituição, no que esta precisa fazer para viabilizar a educação de modo pleno. Além de pontos que tornam o professor um profissional de destaque, deve-se fazer o mesmo exercício e pensar os mesmos pontos concernentes às instituições, que devem igualmente se responsabilizar pelos adolescentes. E um alerta: não se deve perder de vista o adolescente que há em cada um de nós e saber se reconciliar com isso.

 

No entanto, ao lado da burocracia do estado, os fóruns advertiram para uma autoburocracia pessoal dos profissionais que se refugiam em sua agenda, como uma forma de não entrar em contato com os jovens. Isso só faz explícita a impotência de cada um. Precisamos inventar novas alternativas para abrir espaços de fala contra essa inércia. Nesse sentido, os fóruns de adolescência propõem interrogar a função, por exemplo, do psicólogo escolar, repensando qual seria seu lugar na escola, perante os alunos, professores, pais, psiquiatras, etc. Do mesmo modo, repensando a função mesma do psicólogo nos CRASs. Sua função acaba desembocando na tarefa de “encaminhamento” e não, como se espera dele, na operação de escuta ou na do mediador do laço entre o jovem e o adulto.

 

Logo, pergunta-se como está a formação do psicólogo hoje? Como está sua formação em termos de uma capacidade de mediação, de sua possibilidade de sustentar o mal-estar, a falta e a operação de escuta? É necessário prepará-lo para manejar a transferência, formar grupos de conversação, rodas de conversa (com princípio, meio e fim), que contrariem a lógica do encaminhamento e instituam dispositivos baseados na fala e na escuta. Isso é saber demandar aos adolescentes que digam o que eles próprios querem, em vez de reproduzir o que é supostamente o certo; é saber instituir a “pausa” como princípio regulatório de escuta, de corte, de enigma.

 

É possível preparar o psicólogo e o educador orientados psicanaliticamente para o trabalho com adolescentes que estão nas ruas, nas comunidades, fora da escola, a exemplo das iniciativas testemunhadas, que antecipam o empuxe à prática do ato infracional.

 

Discussão: em relação aos sintomas que se apresentam hoje no campo da adolescência, é importante que possamos construir duas vias de intervenção: (1) uma que nos leve a efetuar discussões políticas e efetivamente propor mudanças para as “canetadas que irrompem no meio do caminho” e (2) outra que nos dê suporte para lidar com a dimensão das particularidades dos sujeitos que atravessam a passagem adolescente. Para a primeira, sugere-se a construção de espaços de discussões e fóruns permanentes, criando interlocuções em Rede, que derivem em intervenções de caráter político na cidade, tanto com relação às condições ofertadas aos jovens, como com os trabalhadores das políticas públicas. Para a segunda via, sugere-se a criação de dispositivos que impliquem o sujeito-trabalhador em seu fazer e viabilizem a construção de saídas criativas articuladas de modo interdisciplinar e intersetorial. Importa dizer que tais dispositivos privilegiem a circulação da palavra dos adolescentes e de quem trabalha com eles. Também se sublinha a importância desses dispositivos destacarem a relação do professor/trabalhador com o aluno/adolescente, ajudando o adulto/professor a ocupar um lugar de saber não todo na transmissão, ou seja, uma posição que possibilite do lado do aluno/adolescente, a construção de um saber próprio. Desse modo, nas formações oferecidas aos trabalhadores torna-se mais importante, por exemplo, resgatar a dimensão ética nas relações com os adolescentes do que a transmissão de “conhecimentos sobre a adolescência”, apontando sempre para a emergência do sujeito (aluno/autor de ato infracional) de modo que ele possa ir do sintoma ao saber-fazer com seu sinthome. A ideia é que se possam problematizar os impasses do dia a dia do trabalho de forma que as dificuldades sejam tomadas não como fator de impotência, mas como impossibilidades referidas à dimensão da falta estrutural – condição imprescindível para a intervenção com adolescentes.

 

EIXO 2: INFÂNCIA E SINTOMAS:

 

Proposições: Temos aqui alguns pontos das relatorias das discussões dos 5 fóruns relativos às questões da infância. De início, cabe lembrar que o trabalho do psicanalista numa escola será sempre o de quem propõe perguntas lá onde o saber pode se fechar como resposta aos impasses encontrados nos transtornos de aprendizado e nas dificuldades das inclusões. Se a escuta de professores vem se constituindo numa importante ferramenta para diminuir o mal-estar docente, ela também permite a criação de espaços de interlocução necessários na estrutura escolar. Quando se fala de escuta, se diz que ela deve ser ampliada para toda a escola. As crianças com transtornos de aprendizado, seja por dificuldades orgânicas ou mesmo de estruturação psíquica, quando circulam pela escola precisam ser acolhidas, e esse acolhimento poderá acontecer de muitas formas e com variados atores desse ambiente. Quando Freud nos aponta que o brilho do nariz pode ser o traço que permite o apaixonamento, ele revela o caráter aleatório do encontro com o Outro. Portanto, não sabemos, a priori, qual será o traço que permitirá a uma criança se enlaçar na escola, quem será o portador desse traço que, ao acolher essa criança, a ajudará na construção de uma pertença. Então, a escuta deve incluir todos os atores do chão escolar.

 

Ao seguirmos com as questões de inclusão e dos atores escolares a serem escutados, precisamos incluir as crianças nesse movimento. Primeiramente, o psicanalista poderá com seu trabalho sustentar um cuidado, que é responsabilidade compartilhada por toda a instituição, de acompanhar a criança que está em processo de inclusão. Comporá, com a rede escolar, um acompanhamento que mapeie quais são as hipóteses da criança sobre os acontecimentos, sobre as pessoas e o que ela está ali empreendendo e aprendendo. Ainda, com sua intervenção, poderá estabelecer com os professores envolvidos o cuidado de escutar os colegas de turma. O que as crianças formulam sobre o colega em processo de inclusão? Quais são suas teorias sobre as dificuldades que presenciam nele e em outras crianças? A construção do conhecimento está assentada sobre o saber de todos que ali se encontram. Apostar que a palavra das crianças, suas questões e as teorias podem abrir frestas no saber cristalizado dos professores é uma das consequências dessa ampliação do espaço de escuta escolar, do trabalho de um psicanalista na escola.

 

Que outros dispositivos são interessantes à escola e têm referências na psicanálise, além da escuta dos atores desse campo? Quando trabalha a metáfora do oleiro, Lacan nos dá uma importante dica: é fundamental a abertura do espaço vazio para que o sujeito surja. Para que as crianças com transtornos de aprendizagem e/ou em inclusão possam encontrar o desejo de aprender, há que se sustentar, nas escolas, possibilidades do vazio. São espaços nos quais elas possam brincar acompanhadas por um professor; espaços intermediários entre a família e a escola estruturada, onde o sujeito de desejo possa surgir. As “oficinas do vazio” são dispositivos que sustentam um encontro com o conhecimento mediado pelo lúdico e pelo encontro singular da pequena criança com seu próprio desejo de aprender.

 

Sustentar espaços possíveis à singularidade de cada criança é outro grande desafio dentro das escolas, que não deixa de ser uma construção que se dá sempre a posteriori. Talvez essa seja uma das razões por que Freud dizia ser a educação um dos três ofícios impossíveis. O tempo de educar singularmente está sempre além, surgirá no tempo que é próprio e singular a cada criança. Quando na escola há possibilidade para singularidade e diferença, ali poderemos ter a sustentação das crianças como sujeitos de desejo de conhecimento; futuros sujeitos de direitos que são aqueles que irão na polis serem os cidadãos do futuro. A escola propicia às crianças o exercício do laço social. Família, escola e polis constituem tempos/espaços singulares e moebianos da estruturação subjetiva das crianças. Como nos ensinou Lacan, o inconsciente é social. Portanto, quando a escola se reconhece como um dispositivo social democrático, permite que as crianças sigam com sua importante tarefa de se constituírem como sujeitos.

 

Muitos são os desafios encontrados pelo entrelaçamento dos campos da Psicanálise e da Educação. Mas são as crianças que nos impulsionam a novas perguntas e à abertura de novas frestas em nossos saberes. O que fazemos com “isso”? Seguimos tentando decifrar sintomas e almejar saídas. Seguimos em trabalho.

 

Discussão: a relatoria do Eixo 2, ao pensar no fazer do psicanalista na escola, apontou prioritariamente para três aspectos: a escuta, a formulação de questões e a abertura de espaços de vazio. A partir das preocupações e indicações da relatoria, em articulação com a questão colocada por Joel Birman na abertura do evento (estamos vivendo hoje uma crise de alteridade?), escolhemos aqui, como fio condutor, a questão da alteridade. Dividiu-se em dois momentos: (1) Infância como alteridade, respondendo àquilo que norteia o trabalho em psicanálise; (2) Movimento e alteridade, refletindo sobre o como, o fazer, atravessado pela psicanálise. A infância como alteridade a demarca como construção a posteriori do adulto. É a infância que traz sempre a marca da estrangeiridade e que delineia um ethos psicanalítico em que o conflito e a divisão jamais podem ser desconsiderados, já que é daí que partimos. A criança-sujeito convocaria em nós, adultos ocupados na educação e na clínica, a consideração da estranheza constituinte como contramão à fixidez da criança-objeto. Aqui podemos pensar na importância da escuta tanto dos profissionais envolvidos com educação, quanto na voz das próprias crianças. Já o segundo ponto, Movimento e alteridade, segue a indicação freudiana, de 1930, de que o reconhecimento de nossa finitude apontaria um caminho para nossa atividade. Aqui a finitude pode ser entendida enquanto estranheza, vazio. Nesse sentido, a experiência de estranheza articulada ao campo do sentido indicaria um movimento de busca em que a questão, a pergunta, seria o grande operador, a bússola que guiaria o movimento. Como diz a relatoria, “o trabalho do psicanalista numa escola será sempre o de quem propõe perguntas lá onde o saber pode se fechar como resposta”. Assim, o fazer atravessado pela psicanálise não pode prescrever um caminho, já que o movimento de busca será singular e sempre a posteriori, tentando articular o antes e o depois. Parodiando, então, a palestra de abertura, em nosso "canteiro de obras", sejamos escavadores quando necessário e guardiões, sempre que possível, do vazio que nos habita.

 

EIXO 3: DOCÊNCIA E SINTOMAS:

 

Proposições: O eixo temático sobre a docência foi subdividido em 4 fóruns, cujas discussões podem ser contempladas fundamentalmente em 3 pontos:

 

1) A escuta como dispositivo de intervenção e de pesquisa na formação docente: para que se escuta? É preciso entender que estamos falando de uma formação estruturalmente continuada. Não se trata de oferecer mais informação para o professor ou, ainda, buscar efeitos terapêuticos para o mal-estar docente. O objetivo é buscar a implicação subjetiva do professor. Qual escuta? Aquela que faz furo no imaginário, que desconstrói as imagens previamente estabelecidas com relação ao ideal de aluno, de professor, de escola, de trabalho docente. Como escuta? De modo a provocar a cisão entre o sujeito do enunciado e da enunciação. Quem escuta não busca apaziguar, mas desconstruir os sentidos previamente estabelecidos, por exemplo, nos documentos oficiais, nas teorias, no imaginário que traz consigo. O que escuta? O passe da queixa para a implicação subjetiva que leve à responsabilização. A escuta da resistência apareceu como dado importante no contexto da discussão. Cabe assinalar que os fóruns discutiram vários dispositivos de escuta: a conversação em grupos, a análise de práticas profissionais e a escrita na formação do professor. Nesse ponto, a escrita de diários reflexivos ou diário de campo são dispositivos importantes no processo de desfazer as imagens previamente estabelecidas e de levar o professor em formação a uma reflexão diferenciada que o leve a perceber: qual é minha relação com o que digo na queixa?

 

2) O desejo na formação dos professores e no fazer docente: surgiram muitas perguntas no que concerne à escolha de ser professor. O sujeito escolheu a profissão pela via do desejo ou da demanda de "ter um emprego"? Os inúmeros cursos de formação continuada são feitos pela via da demanda ou do desejo? Por que eles não reverberam nas práticas docentes? A demanda é de "mais informação" ou pode se estar disposto a encontrar-se com esse não todo, com o desconhecido? Em que medida os cursos de formação continuada tocam esse professor para que ele deseje a carreira docente e o leve a amar o saber, a ter uma curiosidade pelo conhecimento e a lidar com o "não saber", enfim, para que algo desse "real" da psicanálise apareça? Como os professores poderiam se implicar nesses cursos de formação para que não fossem somente uma demanda externa, mas também uma implicação dos próprios professores na construção desses processos formativos? Como lidar com o tempo na formação de professores? Os fóruns assinalam que é preciso lidar com o mal-estar na cultura que forma profissionais; que há algo da ordem do desejo que move os docentes a buscar soluções criativas para os impasses que encontram diariamente. Não podemos nos esquecer de que muitos alunos entram na licenciatura dizendo que "foi por falta de opção", no entanto, eles permanecem e terminam seus cursos. Para tal, defendemos uma formação artesanal que não se paute numa visão "solucionista da educação", tampouco se baseie em práticas homogeneizantes que se traduzem no esvaziamento do lugar de professor; um lugar, por excelência, de transmissão do saber inconsciente articulado à veiculação de conhecimentos públicos. Trata-se de uma formação calcada na alteridade, na mediação, no entusiasmo e na curiosidade.

 

3) As contingências do mal-estar docente: os fóruns pautaram algo acerca do sofrimento físico do professor como consequência de um sofrimento psíquico, relacionado à demanda de "ser todo", de ter que dar conta de todos os problemas da escola, de estar antenado a todas as novidades tecnológicas e teóricas que chegam a todo tempo. Muito se falou das consequências do discurso do capitalista na prática docente, entre as quais está o desinvestimento narcísico. O professor se sente desautorizado, impotente, um tecnocrata. Qual seria então o antídoto contra essa desautorização? Buscar modos e práticas que levem em conta o desejo do professor, bem como seu próprio corpo, que aparece ora como sofrimento, ora como demanda de uma performance que seja mais atraente que o celular ou outras tecnologias. E como sinal de alerta, os fóruns destacam a necessidade de não recuarmos frente às práticas tecnoburocráticas, totalizantes, tais como as medidas provisórias anunciadas pelo MEC (2016); em especial, aquela referida à reformulação do Ensino Médio (MP 746).

 

Discussão: os psicanalistas se interessam cada vez mais pela condição docente. Constatam que o professor está num mau lugar, com forte potencial patogênico. Lugar ambíguo no qual, de um lado, se parece valorizar seu trabalho quando se trata de enaltecer seu papel na reconstrução do que vai mal na sociedade, enquanto, de outro, o avassalam com salários aviltantes e pouco correspondentes à dignidade de sua função. Dele se espera que seja-todo, feito os super-heróis que, em detrimento de suas vidas pessoais, não vivem senão para se dedicar à causa... de salvar o mundo. Os psicanalistas se empenham em dissecar os fatores em jogo nesse sofrimento e se perguntam sobre as respostas oficiais que são dadas a ele e se teriam algum papel nisso: cursos de formação, reformas escolares, enfim, respostas administrativas, dentro de um modelo, com o perfil claramente contemporâneo, do problema/solução. Os psicanalistas propõem que o professor seja tratado de outro modo, fora da perspectiva solucionista, que ele seja escutado, que seu desejo seja respeitado na formação que lhe é proposta ou no exercício mesmo de sua função. Mas faltaria aos psicanalistas se interrogarem, lembrando uma lição básica da psicanálise, sobre a demanda dos professores por mais formação, antes de aceitá-la, oferecendo desde sua perspectiva uma formação humanizante. Afinal, parece haver nesse campo uma verdadeira perversão da demanda. Os professores são incitados a pleitear formação por um Estado que os julga incapazes. Pontos na carreira, dispensas do trabalho são oferecidos para estimular, mas será que é preciso estimular um desejo de formação? Será que é da fome do professor que parte a demanda? Ou da fome do Estado que aprendeu com as novas lições da pedagogia que se o aluno fracassa a culpa é do professor, de sua formação vacilante, insuficiente? Não seria a demanda de formação, encontrada sim na boca dos professores, uma estratégia para repassar para o Estado a culpa do fracasso escolar? Vocês não investem na gente, na educação, por isso ela fracassa. Como seria uma formação docente fora de um quadro que se constrói em torno da suposta incapacidade do professor a remediar; uma formação que ele mesmo deseje por entender que por força de seu ofício sua formação é estruturalmente continuada?

 

***

 

Eis a síntese possível daquilo que nos apontaram propositivamente os 12 fóruns de comunicação livre do XI Colóquio Internacional do LEPSI. Esperamos que tais apontamentos sirvam minimamente à sociedade em geral, mas, sobretudo, à comunidade brasileira da Psicanálise e Educação, como também à das redes RUEPSY e INFEIES, no sentido de orientarem seus trabalhos de pesquisa, de extensão e de ensino, concernentes a manifestações psíquicas e sociais da adolescência, da infância e da docência, que têm se tornado, hoje, verdadeiros obstáculos à prática e ao exercício pedagógico. Esta Carta, mais do que retratar parcialmente um momento, representa um gesto simbólico e político de amálgama do campo no sentido de seu fortalecimento e também de sua vetorização para um alvo comum que diga respeito ao saber-fazer com “isso”. Longe de buscar univocidades e homogeneidades acéfalas, visamos ressaltar nossas tão explícitas e ricas dessemelhanças para guiar nossos atos em direção, aí sim, à semelhança de uma finalidade. Tal finalidade não seria outra senão a perspectiva inadiável de uma “formação humanizante”.

 

Nenhuma das aplicações da psicanálise excitou tanto interesse e despertou tantas esperanças, e nenhuma, por conseguinte, atraiu tantos colaboradores capazes, quanto seu emprego na teoria e prática da educação (Freud, Prefácio à “Juventude desorientada” de Aichhorn, EBOC, v. 19, 1925: 341).

 

Esperaremos os efeitos disso e seus testemunhos em São Paulo, no XII Colóquio Internacional do LEPSI, que já começou, desde agora, a se realizar.

 

Belo Horizonte, 23 de setembro de 2016

 

Cristiana Carneiro

Marcelo Ricardo Pereira

Márcio Rimet Nobre,

Marcos Paulo Lopes Pessoa

Margareth Diniz

Renata Conte de Almeida

Rinaldo Voltolini

Rose Gurski

bottom of page